COMO OS HUMANOS VIRARAM SERES SOCIÁVEIS
Cerca de 52 milhões de anos atrás, já sem a presença de grandes dinossauros predadores dominando o ambiente, nossos ancestrais primatas noturnos começaram a aparecer durante o dia. No entanto predadores de mamíferos, como o Mesonyx — um carnívoro parecido com um tigre, — ficavam à espreita. Desta forma, os primatas solitários encontraram segurança na união e começaram a se reunir para formar grupos sociais e ficarem a salvo.
Com o passar do tempo, nossos primeiros ancestrais se
tornaram mais sociais, não apenas procurando alimento ou caçando juntos, como
também afagando os pelos uns dos outros em busca de parasitas (comportamento
conhecido como catação) e, às vezes, criando filhos em comunidade. Os primatas
que não praticavam esses comportamentos sociais ficavam de fora da proteção de
suas comunidades e poucos viveram o suficiente para transmitir seus genes.
Quando um comportamento como esse aumenta as chances de sobrevivência de um
animal, esse comportamento pode se tornar uma característica herdada e, após
muitas gerações, a prole o praticará instintivamente, caso contrário, perecerá.
Os comportamentos sociais fortaleciam as comunidades de primatas
e ofereciam proteção a membros individuais do grupo, então eram transmitidos
aos descendentes e gradualmente se consolidaram no código genético dos
primatas. Os humanos modernos ainda mantêm muitos desses comportamentos.
O carinho é um deles e tem aquilo que Dunbar chama de alto
custo temporal, já que os primatas dedicam algumas horas por dia a esse
comportamento. A compensação é que os primatas passam um tempo afagando e
limpando os pelos uns dos outros para demonstrar seu investimento no grupo, o
que reforça seus vínculos e hierarquia social. Quanto mais estreito o vínculo,
mais benefícios para a sobrevivência individual. Os chimpanzés, por exemplo,
têm maior probabilidade de compartilhar
alimentos com seus companheiros de catação. A evolução reforçou esses
hábitos, tornando-os uma sensação agradável. Afagar os pelos estimula a
liberação de endorfinas, compostos neuroquímicos que reduzem a dor ou nos fazem
sentir relaxados ou levemente energizados.
Os humanos modernos têm nervos especializados — chamados
neurônios
aferentes ou sensoriais — que respondem a carinhos suaves e lentos, na
velocidade específica que nossos ancestrais primatas empregavam nas atividades
de catação. O comportamento permanece como um vestígio em nossos pequenos
gestos, como quando as mães acariciam o cabelo de seus bebês.
“Obviamente, já não temos tanto pelo para que outras
pessoas os afaguem como fazem os primatas”, diz Dunbar. “Então, adaptamos
comportamentos de afago e carinho para produzirem o mesmo efeito.”
Conforme o cérebro de nossos ancestrais crescia, os grupos
aumentavam de tamanho e as sociedades evoluíam, mas os indivíduos não tinham
mais o tempo necessário para afagar todos em seu círculo social. Portanto,
desenvolveram novos comportamentos sociais que também desencadeiam endorfinas,
permitindo que estabelecessem vínculos com grupos maiores. Esses comportamentos
incluem risos, canto e dança, alimentação em grupo e, na história mais recente,
rituais de religião e consumo de álcool em conjunto, de acordo com a pesquisa
de Dunbar.
As endorfinas produzidas pelos nossos comportamentos sociais
estão quimicamente relacionadas à morfina, por isso é possível ficar viciado
nelas. Gostamos de dar risadas e jantar com os amigos porque isso ativa as vias
de recompensa do cérebro e nos faz querer mais. Mas o sistema de endorfinas não
atua sozinho.
“Qualquer coisa que ative o sistema de endorfinas também
ativa o sistema de dopaminas”, diz Dunbar sobre a via de recompensa do cérebro
que influencia a motivação, o controle motor e uma série de outras funções
neurológicas. “A dopamina nos traz uma onda de entusiasmo e isso se torna
viciante até certo ponto.” Em outras palavras, é possível que algumas pessoas
que continuam saindo para socializar apesar da ameaça da pandemia sejam
viciadas nas recompensas psicológicas e neuroquímicas obtidas com o
comportamento social.
Outro fator problemático é o ímpeto humano básico de
compartilhar recursos e experiências, diz Michael Tomasello, psicólogo
evolucionista e professor da Universidade Duke em Durham, na Carolina do Norte,
Estados Unidos. “Até mesmo as crianças pequenas apontam para um pássaro em uma
árvore para que outra pessoa olhe, mesmo antes de conseguirem falar”, diz ele.
“Temos uma necessidade de compartilhar nossas experiências.”
Esse desejo é proveniente dos benefícios evolutivos da
cooperação, colaboração e, por fim, cultura. Estudos sobre técnicas usadas
pelos chimpanzés para buscar alimentos sugerem que o último ancestral comum dos
humanos com outros primatas forrageava cooperativamente, de acordo com um artigo de
Tomasello de 2014. Posteriormente, os humanos deram um passo adiante com
sua boa vontade de compartilhar as sobras com os membros do grupo que não
haviam participado de uma busca por alimentos ou caçada.
Alguns pesquisadores, incluindo Tomasello e a primatóloga da
Universidade Estadual do Arizona Joan Silk, acreditam que os humanos são muito
mais altruístas do que nossos parentes primatas. Nas sociedades humanas,
compartilhamos alimentos e dividimos o trabalho, mesmo quando isso não nos beneficia
imediatamente. Somos motivados pela empatia. Essa mudança de comportamento pode
ter sido suscitada por mudanças ecológicas e ambientais que tornaram os
alimentos mais escassos. “Era colaborar ou morrer”, escreveu Tomasello em seu
artigo.
No entanto a generosidade humana tem seus limites, e é mais
provável que ajamos de maneira altruísta com outras pessoas se tivermos uma
conexão social ou cultural com elas, principalmente se acharmos que algum dia
elas possam retribuir, de acordo com um artigo de
Silk e do psicólogo evolucionista Bailey House.
À medida que a competição com outros grupos de humanos
aumentava, nossos ancestrais primitivos começaram a compartilhar seletivamente
conhecimentos que poderiam protegê-los de predadores ou forasteiros.
Desenvolveram a capacidade de criar metas conjuntas e, ao trabalharem juntos,
tornaram-se dependentes entre si para sobreviverem.
“Se estamos caçando antílopes e aponto para uma vara que daria
uma ótima lança, e já fizemos isso juntos antes, você entende o que quero
dizer”, explica Tomasello. “Você a pega e seguimos em frente.” Ele acredita que
esse conhecimento compartilhado, enraizado nas experiências comunitárias, seja
a origem da cultura humana.
Para os humanos modernos, deixar de lado essas atividades
gratificantes de interação social e experiências compartilhadas significa ir
contra nossos impulsos mais primitivos. Mas não é impossível.
Tomasello sugere que as redes sociais, por exemplo, são uma
saída importante para a nossa necessidade de compartilhar. Embora conectar-se
no mundo digital não seja o mesmo que se envolver pessoalmente — não é possível
abraçar alguém on-line para obter as endorfinas produzidas por esse
tipo de carinho — podemos usar as redes sociais para explorar as mesmas vias de
recompensa que ajudaram a consolidar os vínculos sociais de nossos ancestrais.
Reunir-se digitalmente e em tempo real para fofocar, brincar e “dividir” uma
refeição durante uma chamada de vídeo ativará as mesmas vias de endorfina que
uma noitada com os amigos. Mas cuidado para não exagerar e marcar muitos
encontros digitais, pois isso pode
provocar desgaste.
Dunbar afirma que o verdadeiro obstáculo é superar o vício
psicológico em um comportamento, como abandonar o hábito de sair, mas que
também é viável. Embora as redes sociais possam fortalecer os vínculos que já
temos, também podemos usar os espaços on-line para ir além de nossos
pequenos grupos familiares e sociais, participando de conversas globais em
plataformas de rede social como o Twitter e o TikTok.
Conectar-se com pessoas fora de nosso círculo habitual é
essencial neste momento de crise porque nos ajudará a criar vínculos com
pessoas que são diferentes de nós, diz Dunbar. Quando criamos esses vínculos,
obtemos ferramentas para agir de maneira altruísta porque nossos cérebros
primitivos não responderão a novos amigos como pessoas estranhas, mas como
semelhantes. E, talvez, desenvolver esse tipo de empatia possa nos ajudar a ir
contra nossos impulsos evolutivos, o que facilitaria muito na hora de tomar a
decisão de proteger outras pessoas.
FONTE: nationalgeographicbrasil
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